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Casa Aberta

Casa Aberta denuncia leitores ausentes


José Isaías Venera


Um sebo é uma casa aberta de escritores, mas também ponto de encontro de leitores. Quando a casa se fecha, é a memória que, forçosamente, se abre. Deixemos que as memórias encontrem seu devir nos encontros imprevistos dos órfãos da Casa Aberta. Para além das lembranças, a Casa permitiu uma outra experiência que denuncia um círculo de afetos e de traços psíquicos.

Vejamos. Abrir um livro é, ao mesmo tempo, convocar à leitura. Inquietar a alma prestes a ler. Nos sebos, livros presentificam certos traços de leitores ausentes. Alguns cuidadosos, zelosos, disciplinados, outros pouco se têm a dizer; estes são os sistemáticos que vivem ocultando seus percursos, talvez por excesso de amor como se fosse preciso cuidar em demasia de suas próprias imagens. Há os que mostram em demasia; dobram páginas, ávidos, sublinham frases, anotam suas interpretações nas margens das páginas. Quem diria, estes chegam a criam símbolos ao final de uma linha para destacar certa importância no pensamento. Ocorre-me, ainda, que em alguns casos há uma classificação de símbolos, cada qual ocupando uma hierarquia de importância para o leitor. Na verdade, nem os compulsivos escapam. Eles se estendem nos expressos nas marcas de gotas de café ou cinzas de cigarro nas páginas surradas pelo tempo. Ainda há os românticos, que deixam cartas perdidas entre folhas, muitas perfumadas. Como se não bastasse, alguns escrevem versos nas páginas aonde o escritor ausentou seu pensamento. Há sempre muito mais.


No lado dos escritores, há obras que não suportam o caos. Autores que criam mundos ideias onde, somente lá, pode existir o belo e o verdadeiro. Mas há, também, aqueles que anunciam o crepúsculo dos ídolos. A derrocada das ideias redentoras. Recordo-me também daqueles que torcem as palavras, impedindo-as de encontrar seu par nas coisas. Estes autores, como Borges e seus labirintos, dão existência a mundos paralelos que se formam na fenda entre as manchas que delineiam as palavras – os significantes – e os sentidos que se deslizam e se alteram do escritor para o leitor.


Mesmo que leitores não se deem conta, eles se estendem nos livros e no imaginário de seus escritores. Para os objetivos, o mundo é muito fácil de ser decifrado. É preciso dizer sem rodeios. Mas têm os obscuros. Para estes há, sempre, dúvidas. E como eles são complicados! E os autores que escolhem? Estranhos. Kafka. Blanchot. Artaud. Borges. Joyce. Proust. Lispector. Kundera. Abreu. Clarice... Há também os perdidos que buscam no outro o caminho para, paradoxalmente, se “auto ajudar”.

Nos sebos, há de tudo. Saturação de palavras e sentidos. Uma obra é um derramamento das ideias do seu autor, que por sua vez são compostas por muitas outras vozes, mas é, também, meio pelo qual o leitor encontra acalanto a uma voz interna, indecifrável, que sempre o convoca a buscar algo sem nunca, de fato, encontrar o que se deseja com exatidão.


Um livro, assim, compõe o espirito de uma época, e um sebo a reunião de épocas. Em ambos, perdura certos hábitos. Leitores tendem a se repetir nos livros e os sebos a repetir certos autores. Qual o livreiro que não tem, sempre, o livro certo a oferecer ao cliente assíduo? Eles se repetem. Assim, os sebos agrupam ideias aprisionadas em obras e, ao mesmo tampo, fazem circular traços de vidas, algumas disformes, outras ordinárias etc.


Na Casa Aberta talvez o melhor mesmo tenha sido os encontros, as reuniões de diferentes formas de ver o mundo, os estilos que se misturavam, as utopias que se projetavam. O que estava à nossa disposição era, além das narrativas dos escritores e dos sons dos LPs girando no toca-discos, as práticas sociais que se estabeleciam. A Casa foi, por muito tempo, o ponto de encontros de tribos: punks, metaleiros, místicos, comunistas, anarquistas, feministas, libertários, o que gostávamos de nomear como “turma do mal” – uma espécie de grupos que não se adequavam ao “sistema” e encontravam ali um espaço de comunhão.


Fechada, a Casa Aberta deixa muitos órfãos. Suspeita-se que eles terão que conviver com uma estranha memória desgarrada de seu território.

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