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Trechos de uma narrativa literária em construção

O arcaico e suas desvirtudes

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1  | reencontro

 

 

Um filete de sol se infiltra por uma pequena brecha, enquanto Virgínia, à mesa, segue seu movimento lento e repetitivo. Uma exímia neurótica que goza na aridez da repetição. Ela corta o pequeno raio de luz ao levar a xícara com café até seus lábios volumosos. É inevitável o olhar. Sua língua corre discretamente os cantos de seus lábios para afagar sobras acomodadas de espuma de café.   

 

Júlio, ao entrar no estabelecimento, deixou se seduzir pelos seus ombros nus perdidos num vestido vermelho. A testa longa e o nariz curto alinham qualquer olhar para seus lábios disformes, deixando-a com uma assimetria insuportavelmente bela. Ele caminha entre mesas redondas e pessoas conversando...

 

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2 | as mães de deus

 

Ainda muito pequeno, quando sentado à mesa – seus olhos ficavam na altura dos pães e das massinhas –, ele tinha que aguardar poucos minutos até que seu pai fizesse a oração. Era sempre seu pai. Uma lei. Ao menino, o pouco tempo parecia uma eternidade. Tempo pesado que fazia relaxar seus ombros sobre as beiradas da mesa.

Passaram-se anos, quando deixara de ser um menino, para entender quem era aquele deus a quem seu pai agradecia. Quem era aquele ser que só se apresentava na mediação de outro ser. Enquanto o pai ficava distante do filho (era preciso trabalhar para colocar o pão sobre a mesa), era a ele, a este ser sem matéria, que dirigia aquelas palavras, como se seu suor e sua força de trabalho não valessem de nada. Mais difícil ainda seria entender como poderia uma existência ser, por natureza, um não ser, já que ele (digo deus) está sempre condicionado a um outro que o apresenta. Como aceitar que a exaustão de seu pai, marcada nas linhas sofrida de seu rosto, quando no pouco de energia que lhe sobrava, era a alguém sem materialidade que ele dedicava.

 

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4 | unicórnio

 

Os traços não figuravam nada, mas ao mesmo tempo, as linhas inferiores, as duas paralelas com pequenas curvaturas – como a de duas pernas –, eram acompanhadas, ao mover o olhar para cima, de uma sucessão de rabiscos numa escala crescente, formando algo parecido com o tronco de um corpo humano, que, abruptamente, era cortado por duas linhas opostas – como se fossem dois braços – e, como se não bastasse, tendo no topo um circulo deformado. Estava ali, o desenho de uma criança com a intervenção de um adulto, que escrevera abaixo a palavra unicórnio. O ser imaginário estava representado numa folha amarelada, guardada pelo arcaico com seus pertences entulhados no seu quarto.

 

Na época, seu pai anotara abaixo do desenho o significado atribuído pela criança. Mas qual a diferença entre um traço significar um ser, se ele estava, antes mesmo do desenho, no próprio menino, quando Júlio tinha quase quatro anos? Depois de tanto tempo, ele poderia olhar para aqueles traços e ver como foi insolente a atitude de seu pai, como se reforçasse o lugar ainda não inscrito do menino, o da representação. Para o pai, aquele desenho não poderia representar um unicórnio, já que não tinha nenhum traço de semelhança. Se alguma similitude pudesse ser atribuída, seria com uma forma humana. Independente do adulto, o menino poderia, tempos depois, ver o desenho e trazer o mesmo sentido em seu corpo, numa sensação arrebatadora, como se ele pudesse regredir todos aqueles anos.

 

Para o adulto cego pela razão, era simplesmente traços imaturos de uma criança. A palavra cega viria como a luz branca delimitando as margens. Ao filho, a palavra unicórnio era um rabisco. Apaga-se o desenho, e a palavra, na folha, não significaria nada ao menino. Mas o desenho, este sim, seria sempre como um traço do mesmo, que mesmo depois de décadas poderia ser sentido, como uma parte separada, faltante, que se faz percebida. Seria como um ente querido batendo à porta para retornar ao ceio da família.

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