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Kafka e a vida como obra de arte

Kafka e a vida como obra de arte


J.I.Venera


Franz Kafka (1883-1924) é um homem de meio-dizer. De meio-dito. De meio-dia. De um realismo metafórico. De uma ambigüidade que, a ele, só há meio. Entre. Passagem. Encontro. Transgressão. Um homem que sentia o peso do mundo recair sobre seus ombros, projetando um horizonte sombrio. Por isso, ele era um homem de meio-dia, na mais plena inspiração em Nietzsche do Crepúsculo dos Ídolos: “Meio-dia, o momento em que a sombra é mais curta”.


Um autor que escrevia para se afastar da sombra. Para sentir menos peso. Para se libertar das neuroses. Para desviar o valor transcendental que fixa o acontecido fazendo do próprio passado um peso presente; um sintoma.


Como faria ele, para fazer do peso uma obra de arte? Como construiria uma nova possibilidade de vida? Um novo modo de existência? Como sentiria leveza, quando tinha a impressão de sentir, a cada ocorrência, a insustentável leveza do ser?

Em Nietzsche encontraríamos um caminho: só haveria um meio de se libertar do dever, da verdade transcendental, do niilista fundado por Platão, e este meio é a arte. Por meio dela, a vida se torna possível. A arte é um meio de contrapor à vontade de negação da vida, que desvaloriza a vida em nome dos valores superiores. A vida como obra de arte passa a afirmar da potência criadora que, por sua vez, difere dos valores eternos do cristianismo ou da razão grega que paralisam a vida fixando o sentido sobre as formas de existir. Kafka encontrou sua libertação na literatura.


Em seu diário, encontramos: “Como não sou outra coisa senão literatura e nada posso ser ou quero de diverso, meu emprego nunca pode me monopolizar, embora bem possa me arruinar”. O trabalho burocrático no escritório de uma fábrica não cooptou sua potência, ao contrário serviu de cenário expressionista para sua literatura. Nem mesmo seu pai, Hermann Kafka, para quem dedicaria uma carta perturbadora, poderia levá-lo a morte. Morte de sua potência. Ao invés de ser sucumbido pelo dever de cidadão, pela lei, pela moral e pelo “nome-do-pai”, Kafka fez do peso do mundo a potência de sua escrita. Sendo Kafka a própria literatura, sua vida passou a ser sua própria arte. Uma vida como uma obra de arte.


A carta escrita para seu pai é o registro de um pai presente, de uma lei presente, de uma estrutura social inscrita em seu corpo e que, somente pela palavra, pela transfiguração do valor, do sentido, o humano demasiadamente humano poderia ser combatido. Como poderia Kafka narrar às condenações sem que houvesse infração cometida, se a lei enquanto peso não estive pesando sobre seu ser? Como poderia narrar uma maquinaria de tortura inscrevendo sobre o próprio peito do condenado sua sentença, se a disciplina, a hierarquia e a moral não estivessem pesando sobre ele? Como poderia Kafka escreve uma carta em que ele declarava o seu fracasso pessoal ao seu pai, indicando ironicamente que “se não fosse por seus métodos educativos não conseguiria o sossego noturno”, se o pai não estivesse vivo em seu corpo, pesando sua alma? “Não sou outra coisa senão literatura”.


A literatura para Kafka era a cura pela palavra. Palavra que remove palavra. Entre elas, o real de Kafka. É neste sentido que Deleuze e Guattari referem-se a Kafka como uma literatura menor. Singular. Literatura enquanto máquina de diferença.

Se o peso do mundo era insuportável para Kafka, era preciso criar uma linha de fuga, inventando, nas palavras de Deleuze e Guattari, “uma máquina de guerra”. A literatura, assim, é vida. Vida como obra de arte que se delineia num devir menor. Numa maquina de guerra. Numa máquina de destruição de valores. Numa máquina que desenha o mundo como pura aparência. Como pura palavra.


O que faz do mundo um peso? Nietzsche é preciso: o homem inventou Deus, logo depois ele esqueceu que o inventou, e passou a tratá-lo como ser transcendental. Desde então ficamos presos aos valores eternos que nos impedem de construir uma vida menor, diferente. Nietzsche e Kafka são duas vidas que ousavam transgredir os valores transcendentais e, por isso, construíram cada um uma máquina de guerra. O resultado, duas vidas como obra de arte.

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