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O real da poesia como espaço aberto para o impossível  
[ Apresentação do livro Mares in versos, de Denise Martins Freitas ]


José Isaías Venera​

Os poemas são, como num sonho, o real do sonhador que não domina seu estado de vigília. Diante dessas impressões, faz sentido o entendimento de Freud, de que o homem não é senhor em sua própria morada. E talvez, um poema, como uma das expressões mais livres, seja também o mais próximo do real, mas próximo do que há de mais incompreendido na vida: os sentidos sobre o sujeito que a própria razão desconhece.



A poesia não teria similitude a um sonho? Em seu movimento de metáfora (deslocamento) e metonímia (condensação), o sonho ilude a consciência ao trazer à tona os fantasmas do sonhador. Ora, na poesia há, sempre, algo que nem mesmo o poeta consegue explicar, e é nesse espaço do inexplicável, aberto pela linguagem, que a vida se projeta para além da frieza da razão. Iludida pela disposição das palavras, a consciência não percebe que os poemas são a materialidade de sentidos que a própria razão desconhece.

 

 

Como poderia alguém esperar o tempo? Mas é assim que Denise dá forma ao que não tem aparência, ao que não se faz imagem. Como poderia o tempo ter forma? Sim, é verdade, os filósofos explicam. De Platão a Schelling, ou mesmo em Deleuze, “o tempo é o esforço da eternidade para alcançar a si mesma”.


Denise é historiadora, mas deixa escapar nessa sua arte que as coisas mais importantes brotam na tragédia. É o naufrágio da razão. Essa é a tragédia. Em certa medida, não se percebe pretensões maiores nesses poemas, diferente dos produzidos no início do século XX, quando poetas, como em Brecht, questionavam, por exemplo, a própria condição de camarada, ou seja, o esforço para compreender o sujeito a partir do “nós”. Lembremos: “o indivíduo pode ser aniquilado, mas o Partido não pode ser aniquilado”. Eram poetas a partir do “nós”. Lembremos: “o indivíduo pode ser aniquilado, mas o Partido não pode ser aniquilado”. Eram poetas que expressavam os sintomas do século, como propõe Alain Badiou. Quais seriam as condições que permitiram, por exemplo, Fernando Pessoa escrever Ode marítima? Para Badiou, Pessoa expressa o sintoma de um certo estado nômade: “para que o indivíduo se torne sujeito, é preciso que supere o medo, ‘o medo inato das cadeias’, certamente, mas mais ainda o medo de perder toda a identidade, de ficar despossuído da rotina do lugar e do tempo, da vida ‘regrada e revista’”. Assim, Pessoa adota Portugal como sua terra natal, esse país que já foi central na Europa das capitanias, mas que se encontrava, no século XX, isolado. Assim, Denise como uma historiadora poeta faz sua arte
totalmente à parte de qualquer referência acadêmica, e por isso arte, e encontra seu valor naquilo que Nietzsche considerava importante, a criação como uma “densa nuvem não histórica”.


Distante de sua cidade natal, Denise faz de Itajaí, esta cidade marítima, o cenário das imagens que os poemas nos levam a ver.Denise se faz mais pertencente a Itajaí do que outro, outro itajaiense que não deixa a linguagem brotar para fazer de seus sintomas arte.Até mesmo os textos que não se enquadrariam à forma de uma poesia têm em sua cadência, o conteúdo e a melodia de seus poemas. O mar, o rio, a lua. Prestemos atenção em alguns dos títulos de seus poemas e textos livres: Mergulho por mares inversos; A longa espera do tempo; Naufrágio; Caminhos do dia; Jardim de lua; O moço dos ares; Contos de um dia cinza; Depois da morte. Há sempre algo impossível que se faz possível. Como mergulhar no mar, não estando nele. Mas como Denise poderia dizer sobre o mar se ele não estivesse dentro dela? É como a poesia “Contos de um dia cinza”, ora não é um conto, mas como ela poderia fazer uma poesia se o conteúdo de contos de dias cinzas, sombrios, tristes, não pertencesse a ela também? Mas Denise faz isso construindo imagens com palavras. O dia cinza ganha forma na arte de um pintor que ressalta cores “sem serventia”. Mas nenhum deles é tão impreciso quanto “Depois da morte”. Nenhum deles é tão eterno quanto este poema que esboça “o esforço da eternidade para alcançar a si mesma”.

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